sexta-feira, 15 de agosto de 2008

oi meu anjo ( resposta )


Querida .
Tanto quanto pude perceber ao longo da minha curta existência, os problemas da alma não têm cura óbvia nem necessária e o pior de tudo é que deixam sempre sequelas. Ninguém volta a viver na mesma inocência depois de ter chorado, pelo menos uma vez, por não se querer mais a si próprio, ao seu corpo, por querer desistir de tudo e, pior que isso, não conseguir. Quando estava na XXXXX especialmente no último ano, antes de ir para Amesterdão, o único momento de felicidade do meu dia era o momento em que me deitava, porque sabia que iria finalmente poder libertar-me do peso de mim própria, da minha existência medíocre; deixaria de ser eu, a falhada, a feia, a triste, aquela que nada tinha a ver com o que eu realmente queria ser. Tinha pesadelos, frequentemente, dores de cabeça constantes de tanto pensar, de tanto buscar soluções que me pareciam todas inatingíveis, de tanto me esforçar por não desistir de tudo... Chorava todos os dias, sempre pelo mesmo, por nada em concreto, na cama, no banho, por vezes às escondidas num canto qualquer. "O sonho comanda a vida...", é o motor que nos faz acordar todos os dias; mas quando o sonho parece estar comprometido, encurralado, o motor começa a fraquejar. Sem a perspectiva de chegar onde queremos, a esse ponto irreal no fundo do arco-íris, começamos a dissolver-nos no real, a deixar de existir, pouco a pouco. Alguns habituam-se e passam a viver mecanicamente, outros não suportam. Mas seja como for, há sempre pedaços que se perdem que não voltam mais, como uma mão amputada. A cura, se a houver, está dentro de ti ou talvez nas mãos do acaso. A mim valeram-me algumas pessoas que conheci no momento certo, a ida para Amesterdão, a consciência de que a minha existência miserável era importante na vida de algumas pessoas. Acabar o curso é uma parte do teu caminho. Sabes perfeitamente que é necessário e que não vais estar bem enquanto não acabares. Depois há que seguir em frente e eu prometo estar lá com um pacote das dicas que ninguém me deu. O mais importante é fazer o que tiveres vontade e não o que te parecer certo. O que te fizer feliz, o que o instinto te indicar como caminho a seguir. Há quem consiga vencer os fantasmas com trabalho e empenho, quem os afogue em álcool, cigarros e poesia, quem se dedique a ajudar os outros por reconhecer que os seus problemas não são nada quando ainda há milhões de crianças com fome no mundo. Cabe-te a ti descobrir a tua tábua de salvação, cabe-me a mim ouvir-te e lembrar-te que não estás sozinha no comboio fantasma, nesta casa de horrores que parece não ter porta. O mundo parece dividir-se entre felizes e infelizes, os que nasceram integrados e os que nasceram fora de tempo, no sítio errado, quiçá por engano. Acho que pertencemos ao último grupo... mas isso não significa que a vida e o mundo não nos pertençam por direito. Só temos de descobrir o nosso lugar no puzzle e mesmo que não consigamos, temo-nos uns aos outros para percorrer o caminho. Mas nunca mais penses que estás sozinha. O "homem absurdo" que descobriste dentro de ti já foi explicado por Camus (aconselho-te a ler "O Mito de Sísifo", acho que te vais sentir melhor) e certamente por outros antes e depois dele. Curiosamente, a nossa miséria parece pesar menos quando sabemos que há outros como nós, que choram e gritam pelo mesmo, para quem os nossos pontos de interrogação não são meras questões retóricas... Quando à felicidade que dizes procurar em pequenas porções, não vejo grande diferença no que todos os outros fazem. Afinal de contas que procuramos nós nos outros senão um veículo que nos ajude a chegar mais depressa ao fim do nosso arco-íris? Eu diria que felizes são aqueles que amam sem esperar nada em troca, que amam sem ego, com o desprendimento de quem não pode ser magoado por não se considerar mais do que nada nem ninguém. Quando chegares a esse estádio maravilhoso de desprendimento e conseguires, como Jesus, dar a outra face e pedir perdão por quem não sabe o que faz, deixarás de mendigar a tua felicidade aos outros, aos bocadinhos. Vais poder encontrá-la onde ela realmente está, dentro de ti mesma... Bem sei que isto é filosofia demais para nós, meros mortais perturbados com a sua própria existência, mas às vezes ajuda. O outro mundo... o mundo dos teus sonhos... Não há nada que te impeça de chegar lá. Não há nada que impeça de ser quem queres ser, a bela princesa que sorri à multidão eufórica, no mundo sem perguntas, sem dores de cabeça. Nem eu já sei o que digo, também eu choro agora, sei lá porquê, não me apetece almoçar, não me apetece estar aqui, quero fugir e não sei para onde... Acho que isto é como as enxaquecas, são crónicas, moem mas não matam. Há que aprender a viver com elas e aproveitar ao máximo quando te dão uma folga. Desculpa por dizer que a tua vida é emocionante, não pensei que te pudesse magoar, não tive intenção. Mas então vê como tudo é relativo... tu que não aguentas com o fardo da tua vida, eu que a acho emocionante, deve haver quem ache a minha emocionante também. Se eles soubessem como a angústia é dura de engolir. Suponho que tenhas visto o filme "Tudo sobre minha mãe", do Almodóvar. No entanto, relembro-te o que diz uma das personagens, um travesti, que a uma determinada altura é acusado de querer ser aquilo que não é: "Somos tanto mais autênticos quanto mais nos parecemos com aquilo que queremos ser." Que buscas tu, meu anjo? Que personagem queres ser no palco da vida? Espero que o teste tenha corrido bem e que as cábulas tenham funcionado. E não te sintas mal por não gostar de fonética. O problema é de quem não te soube incutir o gosto pela matéria... No limite, a culpa é sempre do professor ;) Beijo grande e até breve.


Resposta dada por uma grande amiga minha que por questões de respeito prefiro manter o anonimato.

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